Dra. Sandra Marques, sócia da SPLS, reflete sobre o sono nos profissionais de saúde

Data Evento

16 de Novembro, 2024    
Todo o dia

Dra. Sandra Marques, sócia da SPLS, reflete sobre o sono nos profissionais de saúde 

 O sono insuficiente é um risco para os próprios profissionais de saúde, bem como para os doentes tratados pelos mesmos. 

 Problemas de sono são comuns entre os profissionais de saúde. 

 É urgente falar do sono dos profissionais de saúde! 

 Os profissionais de saúde são seres humanos que dedicam a sua vida a trabalhar no cuidado aos outros. Mas como seres humanos têm igualmente as suas necessidades básicas, como o sono, o exercício ou a alimentação, e as suas fragilidades como o stress inerente a uma atividade profissional desgastante e emocionalmente intensa, com momentos de enorme cansaço, frustração, impotência e por vezes burnout, principalmente na prestação de cuidados diretos a casos clínicos graves e/ ou terminais. 

Nos últimos anos, verifica-se uma preocupação crescente com o sono e o bem-estar dos profissionais de saúde, pela forte evidência científica que dormir mal pode aumentar o risco de resultados adversos para a saúde do próprio profissional, mas adicionalmente pode colocar em risco a tomada de decisões e o desempenho em relação aos doentes pelos quais é responsável e inclusiva comprometer o próprio sistema de saúde (Guille & Sen, 2024). 

Contribuir para um sono adequado a todos os profissionais de saúde exige responsabilidade individual, responsabilidade social e organizacional, e principalmente à data de hoje, literacia para a saúde! 

O sono e suas características 

O sono pode ser definido como um processo fisiológico e comportamental complexo que permite o isolamento parcial relativamente ao meio ambiente, o qual é considerado essencial para a reparação física e psicológica, para a consolidação da memória, modulação emocional, desempenho e aprendizagem (Siegel 2005; Walker & Stickgold 2006). Resumindo, o sono é um processo fisiológico essencial para manter a homeostase e a função do corpo físico, psíquico e emocional.  

Para estudar o sono, precisamos de olhar para as características do mesmo: quantidade do sono, qualidade do sono e hora certa do dia ou ritmo circadiano de cada indivíduo. 

Consequências de um sono insuficiente nos profissionais de saúde 

Um sono insuficiente seja em quantidade, em qualidade e/ou fora da hora certa do dia, é um problema com considerável impacto quer a nível da saúde, quer a nível social e económico (Chaput et al, 2020). Múltiplos estudos epidemiológicos concluem que, entre 30 e 45% da população adulta ocidental, tem um sono inadequado, enquanto que, globalmente, a maioria dos trabalhadores por turnos podem apresentar sinais e sintomas de sono insuficiente (Chattu et al, 2019). A privação de sono, seja por insónia, por trabalho por turnos ou por opção de estilos de vida, tem vindo a ser associada a alterações cognitivas, ao compromisso de tomada de decisões adequadas, à má função psicomotora, a alterações de humor, a desregulação imunológica, entre outros (Chaput et al, 2020; Chattu et al, 2019; Dinges et al., 1997; Killgore et al., 2006). Adicionalmente, um mau sono é um indiscutível fator de risco para doenças cardiovasculares, obesidade, diabetes, depressão, patologia muscular e osteoarticular, dor crónica, ansiedade, depressão, quadros psicóticos, síndromes demênciais e mortalidade de qualquer tipo (Chaput et al, 2020; Chattu et al, 2019; Krause et al, 2017; Walker, 2008; Shi et al., 2018; Yin et al. 2017). Estas alterações físicas e psicoemocionais podem condicionar compromisso significativo na saúde, no bem-estar e na qualidade de vida, podendo igualmente contribuir para a ideação suicida (Liu et al., 2019). 

É consensual que, na sua generalidade, os profissionais de saúde enfrentam muitos fatores de stress, e muitos estudos confirmam que o sono desempenha um papel bidirecional, ou seja, o stress interfere no sono, mas o sono insuficiente facilita o estado de stress físico, emocional e psíquico (Martire et al, 2020). De facto, é importante salientar a especificidade das condições de trabalho da maioria dos trabalhadores da área da saúde que além de horários irregulares, por vezes com turnos duplos, desempenham profissionalmente a sua função de cuidadores, lidando diretamente com doentes com patologias agudas graves e/ou crónicas terminais, as quais geram frequentemente sensação de impotência, vulnerabilidade e fragilidade emocional nos profissionais, condicionando impacto direto a nível do sono. Estas situações de stress laboral são frequentemente potenciadas por responsabilidades pessoais acrescidas, pois é comum presenciarmos profissionais que são igualmente cuidadores dos filhos e de outros familiares. 

Desta forma, numa revisão sistemática de 2016 sobre privação de sono na enfermagem (Stanojvic et al, 2016) e outra mais recente sobre intervenções como melhorar o sono nos profissionais de enfermagem com turnos rotativos (Zhang et al, 2023) verificaram haver privação de sono entre 57% e 68% de enfermeiros e profissionais de prestação de cuidados diretos, como auxiliares de enfermagem, e auxiliares de saúde domiciliária, e concluem sobre o risco de sono insuficiente pela limitação da quantidade do sono, da qualidade do sono, e da disrupção do ritmo circadiano, mas também pelos níveis de stress associados, com consequente compromisso a nível do desempenho cognitivo (Kaliyaperuma et al, 2017). 

A prática médica diária, mais especificamente o internato médico, é um período de grande exigência com períodos prolongados de privação de sono e risco elevado de desenvolvimento de burnout pela intensa carga laboral, frequente supervisão inadequada, falta de autonomia e necessidade de formação e/ ou estudo continuado fora do horário de trabalho. O estudo sobre “Burnout no Internato Medico Português” (Martins et al, 2024), conclui que 25% dos médicos internos portugueses apresentavam sintomas severos de burnout e 55,3% estavam em risco de desenvolver a síndrome completa num futuro próximo. Igualmente, vários outros estudos recentes (Gates et al, 2018; Guille & Sen, 2024; Kaliyaperumal et al, 2017; Trockel et al, 2020) relacionam a privação de sono do médico ao aumento do burnout, à diminuição da realização profissional e ao aumento de erros médicos reportados, salientando a importância de haver uma consciencialização de uma necessária mudança estrutural que permita um equilíbrio entre a vida profissional e a não-profissional dos prestadores de cuidados de saúde. 

Numa recente revisão (Shaik et al, 2022), estudos transversais de rastreio a perturbações do sono dos próprios médicos, concluíram que cerca de 40,9% dos profissionais de saúde apresentam pelo menos um tipo de distúrbio do sono, sendo a síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) a mais prevalente. Reforçam ainda que um profissional de saúde com SAOS mal controlada tem a sua produtividade comprometida, incluindo a sua capacidade de prestar adequados cuidados de saúde. E terminam afirmando que a SAOS tem maior impacto nos acidentes de trabalho que todas as outras perturbações do sono identificadas (Shaik et al, 2022). 

Conclusão 

O sono não é apenas uma questão individual, pois muitos fatores sociais e culturais afetam diretamente o sono na quantidade, na qualidade e na hora certa do dia para cada profissional. É evidente que as características de trabalho inerentes a este tipo de atividade não são favoráveis a um sono saudável. De facto, os prestadores de cuidados diretos de saúde atuam num ambiente que exige uma concentração intensa, bem como resistência mental e física. Lidar com questões que têm uma influência direta na vida dos doentes requer foco e, frequentemente, uma tomada de decisão rápida e assertiva associada a uma necessária comunicação eficaz entre os diferentes profissionais de saúde.  

Paralelamente, cada profissional de saúde deve ter a responsabilidade individual de contribuir ativamente para o seu melhor estado de saúde para poder estar ao seu melhor nível em termos físicos, emocionais e cognitivos. Tal, implica um foco diário nos 4 pilares da saúde: alimentação, exercício, sono e mente. É importante uma adequada alimentação, um exercício físico regular e tentar esclarecer e controlar um possível compromisso do próprio sono. Neste caso, otimizar medidas de higiene do sono e identificar eventuais perturbações do sono passiveis de serem controladas como a apneia do sono, a síndrome das pernas inquietas ou a insónia, entre outras. Adicionalmente, o autoconhecimento em termos de cronotípo é essencial para tentar adequar os ritmos laborais, sempre que possível, ao mesmo. Por exemplo, ritmos mais madrugadores devem privilegiar os horários da manhã, enquanto ritmos mais notívagos devem poder optar, sempre que possível, por horários mais tardios.  

Este conhecimento, deveria ser igualmente do conhecimento da gestão das próprias equipas e da organização das unidades de saúde que, idealmente, escalariam os seus elementos de acordo com o horário biológico dos mesmos, de forma a não desfasar o ritmo biológico do ritmo laboral, pois, os estudos são claros em relação aos acidentes inerentes ao desfasamento do mesmo (Boivin et al, 2021). 

Finalmente, o controlo de stress deve ser considerado por todos, desde pausas laborais programadas, a eventuais momentos de mindfullness e/ ou exercícios de respiração já extensamente estudados quanto ao seu benefício (Rogerson et al, 2024), entre outras práticas, como o yoga, a meditação, o reiki ou banhos de natureza (Rogerson et al, 2024). 

Esta reflexão pode ser, nos dias atuais, considerada uma utopia, mas se não começarmos a implementar o que advogamos aos outros, nunca iremos sair dum padrão sem respeito pelas nossas próprias necessidades físicas, emocionais e mentais. 

 

Bibliografia 

Boivin, D; Boudreau, P; Kosmadopoulos, A. (2021) Disturbance of the Circadian System in Shift Work and Its Health Impact J Biol Rhythms. 2021 Dec 30;37(1):3–28. doi: 10.1177/07487304211064218 

Chaput, J.P; Dutil, C; Featherstone, R; Ross, R; Giangregorio, L; Saunders, T; Janssen, I; Poitras, V; Kho, M; Ross-White, A; Carrier, J. (2020) Sleep duration and health in adults: an overview of systematic reviews. Appl. Physiol. Nutr. Metab. 45: S218–S231 (2020) dx.doi.org/10.1139/apnm-2020-0034 

Chattu, V; Manzar, D.; Kumary, S; Burman, D. Spence, D; Pandi-Perumal, S. The Global Problem of Insufficient Sleep and Its Serious Public Health Implications Healthcare 2019, 7, 1; doi:10.3390/healthcare7010001 

Dinges DF, Pack F, Williams K et al (1997) Cumulative sleepiness, mood disturbance, and psychomotor vigilance performance decrements during a week of sleep restricted to 4–5 hours per night. Sleep 20(4):267–277 

Gates M, Wingert A, Featherstone R, et al. Impact of fatigue and insufficient sleep on physician and patient outcomes: a systematic review. BMJ Open 2018;8:e021967. doi:10.1136/ bmjopen-2018-021967 

Guille, C; Sen, S. Burnout, depression and diminished well-being among physicians. N Engl J Med 2024; 391:1519-27. DOI: 10.1056/NEJMra2302878 

Kaliyaperumal, D; Elango, Y; Alagesan, M; Santhanakrishanan, I (2017) Effects of Sleep Deprivation on the Cognitive Performance of Nurses Working in Shift J Clin Diagn Res. 2017 Aug 1;11(8):CC01–CC03 doi: 10.7860/JCDR/2017/26029.10324 

Killgore WD, Balkin TJ, Wesensten NJ (2006) Impaired decision making following 49 h of sleep deprivation. J Sleep Res 15(1):7 

Krause, A., Simon, E., Mander, B. et al. The sleep-deprived human brain. Nat Rev Neurosci 18, 404–418 (2017). https://doi.org/10.1038/nrn.2017.55 

Liu JW, Tu YK, Lai YF et al (2019) Associations between sleep disturbances and suicidal ideation, plans, and attempts in adolescents: a systematic review and meta-analysis. Sleep 42:54 

Martins, S; Bastos, J; Mendonça, C; Franco-Pego; F; Durão, J; Inacio, R; (2024) Burnout no Internato Médico Português: Uma Perspetiva de Mudança Acta Med Port 2024 Oct;37(10):682-683 https://doi.org/10.20344/amp.21182 

Martirea, V; Carusob, D;  Palaginib, L; Zoccolia, G; Bastianinia, (2020) S. Stress & sleep: A relationship lasting a lifetime Neuroscience & Biobehavioral Reviews Volume 117, October 2020, Pages 65-77 

Shaik, L.; Cheema, M.S.; Subramanian, S.; Kashyap, R.; Surani, S.R. Sleep and Safety among Healthcare Workers: The Effect of Obstructive Sleep Apnea and Sleep Deprivation on Safety. Medicina 2022, 58, 1723. https://doi.org/10.3390/  

Siegel, J. M. (2005). Clues to the functions of mammalian sleep. Nature 437, 1264–1271  

Shi L, Chen SJ, Ma MY et al (2018) Sleep disturbances increase the risk of dementia: a systematic review and meta-analysis. Sleep Med Rev 40:4–16 

Satnojevic, S; Siminc, S; Milutinovic, D (2016). Health effects of sleep deprivation on nurses working Med Pregl 2016; LXIX (5-6): 18   

Trockel, M; Menon, N; Rowe, S; et al (2020) Assessment of Physician Sleep and Wellness, Burnout, and Clinically Significant Medical Errors JAMA Netw Open. 2020;3(12):e2028111. doi:10.1001/jamanetworkopen.2020.281113-188. 

Walker MP, Stickgold R (2006) Sleep, memory, and plasticity. Annu Rev Psychol 57:139–166 

Walker, M (2008) Cognitive consequences of sleep and sleep loss Sleep Med. 2008 Sep:9 Suppl 1: S29-34. doi: 10.1016/S1389-9457(08)70014-5. 

Yin J, Jin X, Shan Z et al (2017) Relationship of sleep duration with all-cause mortality and cardiovascular events: a systematic review and dose–response meta-analysis of prospective cohort studies. J Am Heart Assoc 6(9):e005947 

Zhang, Y; Murphy, J; Holst, H; Barger, L; Lai, Y; Duffy, J. (2023) Interventions to improve the sleep of nurses: A systematic review Res Nurs Health 2023; 46:462–484