Compreender para mudar o mundo

Data Evento

28 de Dezembro, 2024    
Todo o dia

Compreender para mudar o mundo

Professora Doutora Cristina Vaz de Almeida, Presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde

“A leitura da palavra é sempre precedida da leitura do mundo.” Paulo Freire

 

Porque mudamos?

As teorias de base da literacia em saúde e a ciência comportamental mostram que mudamos se tivermos mais competências, se conseguirmos compreender o mundo complexo da saúde, além de aceder aos recursos que necessitamos para mudar, se tivermos oportunidade para essa mudança, e se existir também motivação.

Muitos fatores por isso, para que a mudança ocorra.

Não basta ler. É preciso vivenciar o mundo para o compreender. É preciso retirar do mundo a sua representação metal simbólica para que se possa por fim compreender e agir.

Mas, há mais. Temos de ter contextos razoáveis a amparar a mudança e estar num estádio de vontade de mudança que permita que essa pequena intenção de comportamento se transforme de nos permita dar o passo para essa modificação do comportamento.

Vivemos numa sociedade hipermedicalizada. Com isto bastará ponderar e avaliar, por exemplo, os dados existentes sobre o consumo de ansiolíticos que põem Portugal quase no topo da lista da Europa). Portugal é o segundo país da OCDE com maior utilização de antidepressivos.

Somos sociedades Hiper visíveis, com a necessidade de estar quase sempre online, nas redes, mostrando uma hipotética hipereficiência. Referencio apenas o conhecido síndrome de FOMO, a sigla que identifica o “Fear of Missing Out”, que em português significa “Medo de Perder Algo ou de estar fora de algo” , que se aplica na maior parte das vezes na relação com as presença nas redes sociais, e que pode trazer mais ansiedade, e outros graus como a depressão.

Somos sociedades hiperativas pois estamos sempre a produzir algo seja serviços sejam produtos, sejam ideias, muitas das quais de base pouco científica ou retirada de sites sem grande credibilidade da  fonte, como o risco de cairmos em fake news perigosas. Como referem so serviços Partilhados do Estado, e outros, Vivemos uma “infodemia” de notícias falsas, que ameaça a segurança e a saúde dos cidadãos. Os profissionais da Saúde têm, por isso, responsabilidades acrescidas.

Nesta confluência hiperbolizada da vida, a vontade, a volição é tempestuosamente empurrada para ações que podem não ser as mais racionalizadas ou estruturadas, para cada um que assume  e deseja arduamente um determinado comportamento impulsivo, e muitas vezes pouco baseado na cognição. Gao e outros (2021) afirmam que “equilibrar a gratificação instantânea versus a gratificação adiada, que é melhor, é importante para otimizar a sobrevivência”.

 

Os comportamentos de impulso e os comportamentos geradores de violência

Vivemos em parte os comportamentos de impulso, de arrasto, de modelação por alguns que julgamos pares, mas que no final, não têm muito a ver com o nosso perfil, com a autoestima ou alinhamento que tanto desejamos. Fazemos e navegamos nessa “onda gigante” de uma massificação dos que os outros fazem.

E nesse processo, as decisões sobre a nossa saúde podem ficar em risco.

Também no domínio dos comportamentos associados à violência domestica, a Comissão para a Igualdade de Género  assinala que em 2023 foram acolhidas na Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica 1296 pessoas, sendo 50,8% mulheres, 47,5% crianças e 1,7% homens. Estes comportamentos ocorrem na grande maioria das vezes nas relações familiares próximas. Podemos pensar todos os fatores que espoletam estas situações e que estão relacionadas com os comportamentos.

 

Fazer o que os outros fazem só porque pensamos que é melhor

A decisão de tomar o antibiótico que a amiga ou a vizinha recomendou, a decisão de fumar porque o amigo começou a fumar, a decisão de comer alimentos pouco saudáveis porque aquele grupo também come, ou a decisão de ficar no sofá, porque não encontramos alguma pessoa que nos ajude e vá connosco fazer exercício diário.

E assim vivemos progressivamente, enevoados pelos hábitos dos outros que nos parecem ser os que mais nos podem reforçar o nosso ego, tantas vezes fragilizado pela dureza do mundo, ou simplesmente por queremos afirmar-nos como pessoas que pertencem a um qualquer grupo ou “tribo”.

Nesta secreta necessidade de sermos “como os outros” porque os outros nos parecem melhores, mais felizes ou mais sustentados, acaba por levar um grupo considerável de pessoas a imitar o que está errado.

É essa consciência de saber que afinal somos talvez melhores dos que queremos imitar que nos podem levar ao efetivo controlo nos hábitos negativos, como fumar, beber, jogar, drogar, relações  sexuais sem proteção, ter um aspeto x ou y apenas porque o outro parece mais favorável e impactante nas redes.

Deixar de se viver a repetir o estereótipo de beleza ou de quase perfeição de atitudes é um ato de coragem e de grande cognição, e de consciência que, afinal de contas, são comportamentos que podem levar e enredar-se tantas vezes num suplício silencioso e de desespero.

Quando não há identidade, não se pode fazer face ao que somos, porque não conseguimos saber quem somos para poder gerir essa mesma identidade.

A realidade tem mostrado que o ser humano, na sua dimensão holística é mais do que a soma de várias partes. Na sua necessidade de ajustamento ao mundo, esse mundo tantas vezes desigual, exige o que não dá em troca. O ser deve constituir um investimento indelével da educação do ser humano ao longo da sua vida. Habituar a pessoa desde os primeiros passos cognitivos, a saber as emoções, a reconhece-las e a saber geri-las, provavelmente evitaria muito bullying nas escolas, mobbing, como uma forma de bullying em qualquer contexto, ou mesmo nos locais de trabalho, especialmente planeado e acionado por um grupo e não por um indivíduo, e mesmo a violência em qualquer situação (namora. Escola, na saúde e em outros locais e situações).

 

Da autorregulação à vontade firme de controlar as decisões da vida. E como as mulheres ainda têm um caminho longo a percorrer

A solução parece apostar numa forma mais eficiente de autorregulação, de conhecimentos, capacidades e atributos mais robustos que permita decisões mais acertadas neste mundo tão complexo. E aí aterramos na plataforma robusta da literacia em saúde que, em poucas palavras nos da a indicação para uma maior autorregulação dos nossos comportamentos e., na verdade para um maior poder e controlo da nossa vida.

Uma ponte certamente com a promoção da saúde é o empoderamento.

Empoderar significa ter o controlo da vida e ter essa capacidade de participação nos processos conducente a uma melhor saúde nas suas várias dimensões. Empoderar significa que não se tem poder prévio ou controlo de uma determinada situação.

Burns , em 2020 referia que as mulheres são sub-representadas na área da saúde, com poucas mulheres em posições influentes,  papéis de liderança e sem altos cargos acadêmicos  em comparação com os homens.  Esta autora reforça que as mulheres são menos frequentemente autoras principais de publicações de impacto ou participantes no desenvolvimento de diretrizes de prática clínica.

Estas implicações na falha da igualdade de género são amplas, e impactam, segundo Burns (2020) os nossos pacientes, a ciência, instituições e os sistemas de saúde.

É preciso assim mais empoderamento, mais e melhores comportamentos para que a pessoa consiga racionalizar alguns aspetos da sua vida, e que tenha essa consciência dos atos que defendem a sua saúde e a sua vida física, mental, social, e até espiritual.

 

Comportamento é comportamento. Não é um resultado

Michie et al (2016) vêm refletir que quando projetamos um comportamento, precisamos de ser específicos, para não misturar comportamentos e resultados ou as suas influências. Neste processo é preciso que nos foquemos nos comportamento(s) específico(s) pois estes 1) ajudam a pensar de forma mais tangível; 2) consegue tornar os resultados mais precisos e, 3) é necessário ir ao específico, ao detalhado, para conseguir entender quais as barreiras que devemos remover para conseguir, no final o tal comportamento mais saudável em todas as suas vertentes.

Os autores (Michie et al, 2016) também dissertam sobre a nossa vonta de querer ou projetar para uma determinada mudança de comportamento. Neste campo, em vez de nos fixarmos nesse comportamento que e preciso mudar, saltamos de imeldiato para os resultados que pretendemos ter. No dia-a-dia, normalmente estamos habituados a pensar em resultados tanto na nossa vida pessoal como profissional (e não tanto em comportamentos), pelo que fazer a mudança mental para pensar nos comportamentos tangíveis pode, por vezes, ser complicado, refletem este autores que desenvolvem a ciência comportamental necessária para a tal mudança de comportamento.

Por isso, trabalhar sobre as ações (comportamentos) , os tais objetivos comportamentais, que podem conduzir a um aumento do envolvimento da pessoa ou do grupo, e nesse sentido, esse comportamento contribui para um determinado resultado, parece ser uma boa base de intervenção e ponto de partida.

 

Quando não há competências não há compreensão

As competências conferem a pessoa uma abrangência de conhecimento, de capacidades e de atributos e atitudes pessoais face aos desafios da vida e sobretudo relacionado com efeitos na saúde e no bem-estar.

A capacidade de tomar decisões relaciona-se com a compreensão das mesmas, e o seu uso advém depois dessa compreensão.

Quem não compreende, até pode agir, mas age num vazio de ações não racionalizadas nem suportadas por uma mudança consistente.

A incorreta ou deficitária forma de compreendermos o mundo pode levar a comportamentos negligentes ou mesmo inapropriados pelos detentores de algum poder nas relações familiares, como sejam os cuidadores, educadores.

É na família que se forma o perfil de atuação futura da criança e do jovem, não retirando também o papel fundamental das escolas.

Por exemplo, o Centro de Controlo de Doenças (CDC ) divulgou alguns dados da Pesquisa de Comportamentos e Experiências dos Adolescentes (ABES),  destacando a magnitude dos desafios que os jovens enfrentaram durante a pandemia do COVID-19. O estudo evidencia como as suas vidas foram especialmente impactadas, relacionado com a saúde mental, suicídio, uso de substâncias, abuso e racismo. Um estudo do CDC refere que mais da metade dos alunos sofreram abuso emocional em casa, e mais de 10% relataram abuso físico em casa. O ABES refere que estudantes lésbicas, gays e bissexuais eram muito mais propensos a relatar abuso físico, com 20% relatando que haviam sido abusados fisicamente por um dos pais ou outro adulto em sua casa, em comparação com 10% dos estudantes heterossexuais.

O CDC refere também que mais de 1 em cada 3 alunos do ensino secundário teve problemas de saúde mental durante a pandemia, e quase metade dos alunos se sentiu persistentemente triste ou sem esperança.

Esta entidade de controlo da doença nota que as estudantes do sexo feminino e aqueles que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, ou outros (LGBQ) experimentam níveis desproporcionais de problemas de saúde mental e de comportamentos relacionados com o suicídio. Por exemplo, em 2021, 12% das estudantes do sexo feminino, mais de 25% dos estudantes LGBT e 17% de outros estudantes tentaram suicídio em comparação com 5% de seus colegas do sexo masculino e 5% de seus pares heterossexuais.

Os dados da ABES mostraram também que os jovens que se sentiam mais ligados às pessoas das suas escolas tinham melhor saúde mental. E evidenciado por estudos que as escolas servem como um local crítico para fornecer apoio aos jovens. E aqui há um sentido profundo de ação, intervenção, orientação para o que se torna crítico na proteção dos jovens, seja o problema que tiverem.

Essa ação parte de uma capacidade de compreensão do outro, de orientação, de estratégias para minorar o sofrimento.

 

Conclusão

A literacia em saúde permite-nos desbravar o caminho de um maior entendimento do outro, de maior compaixão pela necessidade de fazer o outro compreender. É e preciso este esforço, para que, a começar pelos mais jovens, as sociedades se tornem na realidade, mais fraternas, mais justas, mais compreensivas, permitindo decisões que afetam toda a saúde numa perspetiva biopsicossocial. Compreender faz bem e a literacia faz bem à saúde.

 

Vaz de Almeida, C. (2024). Compreender para mudar o mundo. [recurso on line, novembro 2024] in Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde.