Desafios éticos na literacia em saúde

Data Evento

4 de Março, 2025    
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Desafios éticos na literacia em saúde

Texto do Enf. Hélder Carreira

A literacia em saúde, definida como a capacidade dos indivíduos para obter, processar e compreender informações básicas de saúde necessárias para tomar decisões informadas, emergiu como um pilar fundamental na promoção da saúde pública e na melhoria dos resultados clínicos. No entanto, à medida que aprofundamos a sua importância, identificamos uma teia intrincada de desafios éticos que exigem uma análise meticulosa e reflexiva.​

Imaginemos a literacia em saúde como uma bússola que orienta os indivíduos no labirinto complexo dos sistemas de saúde modernos. Sem esta bússola, navegar pelas informações médicas, compreender prescrições ou aderir a planos de tratamento torna-se uma tarefa hercúlea. No entanto, a posse desta bússola levanta questões: quem a desenha? Quem decide para onde aponta? E, crucialmente, quem tem acesso a ela?​

A disparidade no acesso à informação é um dos primeiros dilemas éticos que emergem. Em sociedades onde a informação é poder, as pessoas com menor literacia em saúde encontram-se frequentemente numa posição de desvantagem, vulneráveis a decisões médicas mal informadas ou à exploração. Estudos indicam que indivíduos com baixa literacia em saúde têm maior probabilidade de experimentar piores resultados de saúde e maior taxa de hospitalizações (Sørensen et al., 2015). Esta realidade levanta a questão: estamos a perpetuar um ciclo de desigualdade onde os mais vulneráveis continuam a ser deixados para trás?​ 

Além disso, a qualidade e a veracidade da informação disponível representam outro desafio ético significativo. Na era digital, onde a informação é abundante, a desinformação prolifera. A disseminação de informações médicas incorretas ou enganosas, podem levar a escolhas de saúde prejudiciais. Por exemplo, a propagação de mitos sobre vacinas tem contribuído para a hesitação vacinal, resultando em surtos de doenças anteriormente controladas (World Health Organization, 2019). Aqui, confrontamo-nos com a responsabilidade ética de garantir que a informação em saúde seja não só acessível, mas também precisa e confiável.​

A privacidade e a confidencialidade são igualmente centrais nesta discussão. Com o advento de tecnologias de saúde digitais, como aplicações móveis e plataformas de telemedicina, os dados pessoais de saúde tornaram-se mais suscetíveis a violações. A utilização indevida de informações de saúde pode levar a discriminação ou estigmatização. Por exemplo, a exposição não autorizada do estado serológico de um indivíduo pode resultar em discriminação laboral ou social. Assim, surge a obrigação ética de proteger rigorosamente a privacidade dos dados de saúde, garantindo que os indivíduos possam confiar nos sistemas que utilizam.​

A autonomia do utente é outro pilar ético intrinsecamente ligado à literacia em saúde. Para que os indivíduos possam tomar decisões informadas sobre a sua saúde, é imperativo que compreendam plenamente as informações fornecidas. No entanto, quando a literacia em saúde é limitada, a capacidade de exercer autonomia é comprometida. Este desequilíbrio pode levar a uma relação paternalista entre profissionais de saúde e utentes, onde as decisões são tomadas sem o verdadeiro consentimento informado. Este cenário desafia os princípios éticos de respeito pela autonomia e justiça (Beauchamp & Childress, 2013).​

Complementando o raciocínio, a literacia em saúde não é uniforme; varia consoante fatores socioeconómicos, culturais e educacionais. Comunidades marginalizadas ou com menor acesso à educação formal podem enfrentar barreiras adicionais na compreensão e utilização de informações de saúde. Esta disparidade não só agudiza as desigualdades em saúde, mas levanta igualmente questões sobre equidade e justiça social. Como podemos assegurar que todos os indivíduos, independentemente da sua formação de base, tenham a capacidade de compreender e utilizar informações de saúde de forma eficaz?​

A responsabilidade dos profissionais de saúde na comunicação eficaz é outro aspeto ético a considerar. A utilização de jargão médico ou explicações complexas pode alienar utentes com menor literacia em saúde, levando a mal-entendidos e potenciais erros no seguimento de tratamentos. É imperativo que os profissionais de saúde adotem práticas de comunicação clara e adaptada às necessidades individuais dos utentes, promovendo uma relação terapêutica baseada na confiança e compreensão mútua (Schillinger et al., 2003).​

Por fim, a integração de tecnologias emergentes, como a inteligência artificial e big data, na área da saúde, apresenta novos desafios éticos relacionados com a literacia em saúde. Embora estas tecnologias possam potencialmente melhorar os cuidados de saúde, a falta de transparência nos algoritmos e a complexidade dos dados podem excluir indivíduos com menor literacia digital, exacerbando desigualdades existentes. Além disso, a confiança cega em sistemas automatizados sem uma compreensão adequada pode levar a decisões de saúde inadequadas. Deste modo, é crucial promover a literacia digital e garantir que as tecnologias de saúde sejam desenvolvidas de forma inclusiva e ética (Vayena et al., 2018).​

Os desafios éticos na literacia em saúde são multifacetados e interligados, exigindo uma abordagem holística que considere fatores individuais, sociais e tecnológicos. Para navegar eficazmente neste terreno complexo, é essencial promover a equidade no acesso à informação, garantir a precisão e confiabilidade das fontes de saúde, proteger a privacidade dos dados, respeitar a autonomia dos utentes e assegurar que as inovações tecnológicas sejam implementadas de forma ética e inclusiva. Somente mediante um compromisso coletivo com estes princípios poderemos construir um sistema de saúde que verdadeiramente capacite todos os indivíduos a tomar decisões informadas e responsáveis sobre a sua saúde.

 

Referências bibliográficas

Beauchamp, T. L., & Childress, J. F. (2013). *Principles of biomedical ethics* (7th ed.). Oxford University Press.

Schillinger, D., Piette, J., Grumbach, K., Wang, F., Wilson, C., Daher, C., Le, M., & Bindman, A. B. (2003). Closing the loop: Physician communication with diabetic patients who have low health literacy. *Archives of Internal Medicine, 163*(1), 83-90. https://doi.org/10.1001/archinte.163.1.83.

Sørensen, K., Van den Broucke, S., Fullam, J., Doyle, G., Pelikan, J., Slonska, Z., & Brand, H. (2015). Health literacy and public health: A systematic review and integration of definitions and models. *BMC Public Health, 12*, 80. https://doi.org/10.1186/1471-2458-12-80.

Vayena, E., Blasimme, A., & Cohen, I. G. (2018). Machine learning in medicine: Addressing ethical challenges. *PLoS Medicine, 15*(11), e1002689. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1002689.

World Health Organization. (2019). *Ten threats to global health in 2019*. https://www.who.int/news-room/spotlight/ten-threats-to-global-health-in-2019.