Claramente na Complexidade. “As muletas do Manel”, de Rolando de Andrade
As muletas do Manel são de um metal cinzento, quase prateado. No que diz respeito à sua função, assemelham-se bastante às armas de um soldado, na medida em que lhe mitigam o medo de cair no campo de batalha.
As muletas compreendem-no, adivinham os seus movimentos em gestos de antecipação. Ele sabe que é isso que o mantém de pé, apesar dos movimentos lentos e arrastados, quase como se fossem espasmos e lhe permitem ter de volta alguma da liberdade que o Covid lhe roubou há 3 anos atrás.
Hoje em dia, os movimentos do seu corpo, outrora em perfeito estado de conservação, como novo, ficaram bastante condicionados e a vitalidade dos seus pulmões tem de ser arejada através de um buraco que alguns desconhecidos lhe fizeram na traqueia, e que transformou a voz penetrante numa espécie de sopro de quem sufoca.
As muletas e o Manel vivem há 3 anos numa espécie de simbiose, apenas interrompida quando se senta ou deita para dormir.
No consultório, um homem de bata branca que não se apresenta, está sentado numa cadeira preta. Quando entra, Manel faz um pedido disfarçado, em forma de palavras de lamento:
– Dr, já não sou o mesmo. Tem alguma forma de melhorar as minhas pernas?
A resposta foi imediatamente disparada, sem dó nem piedade,
– O Manel pelo menos vem de muletas. Olhe que muitos, na sua idade, já estão mortos, ou quando muito, acamados.
Manel fica impressionado. Aos 81 anos, os seus ouvidos em boa forma, nunca tinham ouvido com tanta clareza o tom desprezível da frieza e falta de empatia. A partir daquele momento, ergueu-se uma parede densa de gelo entre ele e o homem de bata branca.
Manel decide levantar-se apoiado nas suas armas em forma de muleta. Dirige-se à porta, sentindo que não teve oportunidade de falar acerca da tristeza, da frustração e da raiva, da impotência associada ao desamparo, do desespero e de todas as suas implicações, das quedas constantes, da desmotivação, da fragilidade avassaladora, ou acerca da solidão que chegou agora que é mais difícil ir ao café jogar cartas com os amigos. Já para não falar das malditas insónias que o atormentam há vários anos.
O Manel foi ao consultório na esperança de ter uma solução para o seu medo do sofrimento e da finitude. Do outro lado alguém lhe respondeu falando acerca da finitude e do sofrimento dos outros
Manel caminha em direcção a casa, apoiado pelas suas fiéis e previsíveis muletas, deixando lentamente para trás a bata branca sentada na sua cadeira. Aos 81 anos, já não se tem tempo a perder com quem não nos escuta e não satisfaz a necessidade de consolo, pensou enquanto entrava em casa.
Era só disto que o Manel e as suas muletas queriam conversar.