Célia Belim

O primeiro dever do ser humano é ter saúde. O segundo é tornar os outros saudáveis. O terceiro é eliminar os obstáculos que impeçam a saúde dos outros.

Comemoração de dois anos de existência da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS).

A literacia em saúde tem um potencial acrescido pelos mais diversos motivos, entre estes salvar vidas, o que comprova o seu contributo imensurável para a vida humana. Falar de literacia em saúde é falar de vida, saúde, bem-estar, longevidade, competência, capacidade, conhecimento, tomada de decisões acertadas, comunicação, empoderamento.

A literacia em saúde tornou-se um tópico crítico, pois indivíduos literados em saúde podem tomar melhores decisões quando se trata da sua saúde, são mais capazes de aderir aos tratamentos e podem fazer um uso mais eficiente dos recursos (Miller, 2016; Santos et al., 2017). Também é um domínio de literacia que se relaciona fortemente com a capacidade dos indivíduos de se envolverem na gestão de doenças complexas e no autocuidado (Keene Woods, 2023).

Tendo variados méritos, a literacia em saúde pode aperfeiçoar a capacidade das pessoas para compreender melhor noções associadas à saúde e pode aumentar a sua capacidade de assumir a responsabilidade pela sua saúde, o que é fulcral na profilaxia. Pode também influenciar a adesão dos doentes a uma terapêutica, a frequência de utilização dos serviços médicos, o número de hospitalizações e inerentes encargos financeiros (e.g., Coughlin et al., 2020). Estudos têm confirmado esta tese e indicado uma correlação entre a baixa literacia em saúde, a saúde precária e a utilização frequente e injustificada dos serviços de saúde (e.g., Shahid et al., 2022).

Por outro lado, a baixa literacia em saúde associa-se a uma assistência de emergência mais frequente, à utilização menos frequente de serviços profiláticos, a uma menor capacidade de interpretar rótulos e avisos de saúde, a uma maior mortalidade e a despesas de saúde mais elevadas. No contexto das doenças infeciosas, a literacia em saúde precária associa-se com a menor adoção de ações preventivas, como vacinação, e com a compreensão insuficiente sobre o papel dos antibióticos (Castro-Sánchez et al., 2016). Os revezes da literacia em saúde deficitária refletem-se também no maior risco de morte para indivíduos que padecem de doenças cardiovasculares, diabetes e doenças mentais, impulsionado pelo uso ineficaz dos serviços de saúde, comunicação inefetiva com a equipa de saúde e deficiências no autocuidado (Friis et al., 2020). A baixa literacia em saúde pode também constituir uma barreira à prestação de cuidados a doentes crónicos e pode interferir com a tomada de medidas a nível central quanto ao funcionamento dos sistemas de saúde, no que concerne aos objetivos de profilaxia, diagnóstico precoce e tratamento.

Estudos de pais ou cuidadores de crianças pequenas, incluindo bebés, mostraram que a baixa literacia em saúde daqueles gerava comportamentos negativos de saúde em relação à criança cuidada, como comportamentos obesogénicos, comportamentos de prevenção de lesões, perceção de cuidados ambulatórios, conhecimento sobre infeções do trato respiratório superior e crenças, compreensão dos rótulos de medicamentos pediátricos para tosse e constipação e amamentação (e.g., Lee et al., 2018). Alguns estudos mostraram que os cuidadores com baixo nível de literacia têm menos probabilidade de entender aspetos importantes da orientação pediátrica antecipada, incluindo avaliar os riscos e benefícios das vacinações de rotina, realizar verificações de segurança doméstica e lidar com emergências domésticas comuns (e.g., Llewellyn et al., 2003).

Falar de literacia em saúde é também lembrar diversos desafios, como a necessidade de aumentar o nível de literacia em saúde em geral, que é baixo entre a população europeia, e de certos grupos sociais em particular, como idosos, imigrantes, pobres. Nos oito países europeus submetidos ao Inquérito Europeu sobre Literacia em Saúde (HLS-EU), 47,6% dos inquiridos revelaram níveis de literacia em saúde inadequados ou problemáticos (Sørensen et al., 2015). Este é um desafio que se coloca ao desenvolvimento dos sistemas de saúde em todo o mundo (Barańska & Kłak, 2022).

Em Portugal, parece que os resultados têm vindo a melhorar de acordo com o Health literacy survey 2019 (HLS19) (Telo de Arriaga et al., 2021). Com base numa amostra representativa da população portuguesa (n=1247), apurou-se que 65% desses inquiridos apresentam um nível “suficiente”, seguindo-se os com um nível “problemático” (22%). O nível “inadequado” (8%) consegue ser superior ao “excelente” (5%) (p. 9). Sete em cada dez respondentes apresentam níveis altos de literacia em saúde (p. 14). Entre as competências específicas da literacia em saúde, o aspeto da “compreensão da informação” revela os maiores níveis de literacia em saúde e o aspeto “avaliar” os mais baixos. A literacia em saúde associada à vacinação excede os 70% de pessoas categorizadas com níveis excelentes e suficientes de literacia em saúde (p. 14). Contudo, os níveis problemáticos e inadequados são elevados na literacia em navegação no sistema de saúde (65,5%) e na literacia digital em saúde (52,7%) (p. 12), notando-se a necessidade de investimento nestes domínios. O HLS19 (2021) não segue o mesmo instrumento de medição do estudo realizado em 2014 (HLS-EU), não sendo possível a sua comparação, nem o conhecimento dos motivos que contribuíram para este aparente aumento de literacia em saúde. Parece que a pandemia da Covid-19, que afetou todo o mundo, teve o mérito de fomentar o aumento da literacia em saúde. Um estudo focado no caso alemão conclui que a exposição sistemática a informações de saúde claramente estruturadas e continuamente repetidas durante a pandemia parece ter melhorado a capacidade da população alemã de processar informações sobre saúde, em particular as competências digitais (Schaeffer et al., 2021). Também as mulheres, as pessoas com escolaridade baixa ou média, os jovens e os imigrantes parecem ter beneficiado mais do que a média. Este estudo releva-nos algumas lições já sabidas, como a influência da linguagem alicerçada na clareza e da repetição para o processamento de mensagens.

Têm sido empreendidos esforços para que a literacia em saúde não seja entendida como responsabilidade exclusiva dos indivíduos, como também responsabilidade de governos e sistemas de saúde, que devem apresentar informações claras, precisas, apropriadas e acessíveis para diversos públicos (Rudd, 2015). Em Portugal, em 2018 foi criada a Divisão de Literacia, Saúde e Bem-Estar, da Direção-Geral da Saúde (DGS), que conduziu uma nova avaliação da literacia em saúde da população portuguesa (HLS19) e, em 2023, foi lançado o plano estratégico designado Plano nacional de literacia em saúde e ciências do comportamento 2023-2030.

Também em 2021, num esforço louvável de especialistas em literacia em saúde que a pretendem promover, é criada a Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS) sob a égide da Professora Doutora Cristina Vaz de Almeida e, em 2023, são lançados o primeiro Manual de literacia em saúde (Vaz de Almeida & Fragoeiro – coord.) e a Revista Portuguesa de Literacia em Saúde (RPLS). A SPLS, com fins científicos, formativos, técnicos, organizativos, éticos e humanos na promoção, empenha-se no desenvolvimento e aperfeiçoamento da prática da literacia em saúde, promovendo múltiplas iniciativas. Uma delas é a RPLS, que inspirada na filosofia de que “saber é saúde”, almeja transformar conhecimento em poder. É um projeto editorial comprometido tematicamente em abordar tópicos que envolvam a literacia em saúde, como práticas, desafios, resultados, contributos.

Sørensen (2024) lista tendências de literacia em saúde para 2024 para estimular uma reflexão mais aprofundada, como: 1. serviços de saúde literados em saúde e de fácil utilização; 2. literacia em saúde digital; 3. literacia em autocuidado e literacia em saúde mental; 4. inquéritos globais, nacionais e locais de literacia em saúde; 5. literacia em saúde em escolas e ensino superior; 6. literacia em saúde como uma competência profissional; 7. literacia em saúde para a segurança cultural; 8. literacia em saúde reconhecida como um assunto de direitos humanos; 9. literacia em saúde como prioridade política; 10. organizações e sistemas literados em saúde. Confrontando estas tendências com o que se tem feito em Portugal no campo da literacia em saúde, pode-se considerar que estamos no bom caminho.

Neste compromisso com a saúde e lembrando que a saúde é a maior riqueza que qualquer ser humano pode ter e que sociedades com pessoas saudáveis são mais felizes, mais produtivas e mais desenvolvidas, pode-se dizer que: O primeiro dever do ser humano é ter saúde. O segundo é tornar os outros saudáveis. O terceiro é eliminar os obstáculos que impeçam a saúde dos outros.

Referências
Barańska, A., & Kłak, A. (2022). Recent trends in health literacy research, health status of the population and disease prevention: An editorial. International Journal of Environmental Research and Public Health, 19(14), 8436. https//doi/org/10.3390/ijerph19148436
Castro-Sánchez, E., Chang, P.W.S., Vila-Candel, R., Escobedo, A.A., & Holmes, A.H. (2016). Health literacy and infectious diseases: Why does it matter? International Journal of Infectious Diseases, 43, 103-110. https://doi.org/10.1016/j.ijid.2015.12.019
Coughlin, S.S., Vernon, M., Hatzigeorgiou, C., & George, V. (2020). Health literacy, social determinants of health, and disease prevention and control. Journal of Environment and Health Sciences, 6(1), 3061.
Friis, K., Aaby, A., Lasgaard, M., Pedersen, M.H., Osborne, R.H., & Maindal, H.T. (2020). Low health literacy and mortality in individuals with cardiovascular disease, chronic obstructive pulmonary disease, diabetes, and mental illness: A 6-year population-based follow-up study. International Journal of Environmental Research and Public Health, 17(24). https://doi.org/10.3390/ijerph17249399
Keene Woods, N., Ali, U., Medina, M., Reyes, J., & Chesser, A. K. (2023). Health literacy, health outcomes and equity: A trend analysis based on a population survey. Journal of Primary Care & Community Health, 14, 21501319231156132. https://doi.org/10.1177/21501319231156132
Lee, J.Y., Murry, N., Ko, J., & Kim, M.T. (2018). Exploring the relationship between maternal health literacy, parenting self-efficacy, and early parenting practices among low-income mothers with infants. Journal of health care for the poor and underserved, 29(4), 1455-1471. https://doi.org/10.1353/hpu.2018.0106
Llewellyn, G., McConnell, D., Honey, A., Mayes, R., & Russo, D. (2003). Promoting health and home safety for children of parents with intellectual disability: A randomized controlled trial. Research in Developmental Disabilities, 24(6), 405-431. https://doi.org/10.1016/j.ridd.2003.06.001
Miller, T.A. (2016). Health literacy and adherence to medical treatment in chronic and acute illness: A meta-analysis. Patient Education and Counseling, 99(7), 1079-1086. https://doi.org/10.1016/j.pec.2016.01.020
Rudd, R.E. (2015). The evolving concept of health literacy: New directions for health literacy studies. Journal of Communication in Healthcare, 8(1), 7-9. https://doi.org/10.1179/1753806815Z.000000000105
Santos, P., Sá, L., Couto, L., & Hespanhol, A. (2017). Health literacy as a key for effective preventive medicine. Cogent Social Sciences, 3(1), 1407522. https://doi.org/10.1080/23311886.2017.1407522
Schaeffer, D., Klinger, J, Berens, E.M., Gille, S., Griese, L., Vogt, D., & Hurrelmann, K. (2021). Gesundheitskompetenz in Deutschland vor und während der Corona-Pandemie [Health Literacy in Germany before and during the COVID-19 Pandemic]. Gesundheitswesen, 83(10), 781-788. https://doi.org/10.1055/a-1560-2479
Shahid, R., Shoker, M., Chu, L.M., Frehlick, R., Ward, H., & Pahwa, P. (2022). Impact of low health literacy on patients’ health outcomes: A multicenter cohort study. BMC BMC Health Services Research, 22. https://doi.org/10.1186/s12913-022-08527-9
Sørensen, K. (2024). Health literacy trends 2024. https://www.linkedin.com/pulse/health-literacy-trends-2024-kristine-s%C3%B8rensen–pi7cf/?utm_source=share&utm_medium=member_android&utm_campaign=share_via
Sørensen, K., Pelikan, J.M., Röthlin, F., Ganahl, K., Slonska, Z., Doyle, G., Fullam, J., Kondilis, B., Mensing, M., & Broucke, S. van den. (2015). Health literacy in Europe: Comparative results of the European health literacy survey (HLS-EU). The European Journal of Public Health, 25(6), 1053-1058. https://doi.org/10.1093/eurpub/ckv043
Telo de Arriaga, M. et al. (2021). Health literacy survey 2019 (HLS19): Níveis de literacia em saúde. Direção-Geral da Saúde. https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/estudo-apresenta-nivel-de-literacia-em-saude-dos-portugueses-pdf.aspx
Vaz de Almeida, C., & Fragoeiro, I. (Coord.). Manual de literacia em saúde: Princípios e práticas. Pactor.